Andar pelas ruas de Malta é observar o quão católico é o país. Na maioria das casas, há quadros e imagens de Maria e de Santos na porta. E essa tradição é antiga e tem ligação direta com o nascimento do cristianismo.
O ano era 60 depois de Cristo quando Paulo de Tarso naufragou em Malta. Naquela época o conjunto de ilhas se chamava Melite e era uma província da Sicília, dominada pelos romanos desde 218 a.C.
Paulo, que nasceu Saulo, estava a caminho de Roma para ser julgado pelo imperador Nero. Acusado por líderes religiosos judeus de pregar contra a Lei e o templo, ele então decidiu apelar diretamente ao imperador, um direito seu enquanto cidadão romano. Ele então embarcou em uma longa e difícil viagem pelo Mediterrâneo para chegar na capital do império, sendo escoltado por soldados e acompanhado de outros prisioneiros e tripulantes, cerca de 276 pessoas ao todo na embarcação.
Durante a travessia do mar Adriático, o navio foi surpreendido por uma violenta tempestade. Após dias à deriva, a embarcação naufragou nas proximidades de uma ilha desconhecida. Só depois os sobreviventes descobririam que estavam em Melite. De acordo com o relato bíblico registrado no livro de Atos dos Apóstolos (capítulos 27 e 28), os habitantes da ilha acolheram os náufragos com grande hospitalidade.
Paulo então teria permanecido durante três meses em Malta e depois seguiu viagem até Roma, onde enfrentaria julgamento e, segundo a tradição cristã, seria martirizado anos depois. No período em que esteve na ilha, ele teria curado o pai de Públio, o governador romano local, além de outras pessoas doentes. O episódio marcou profundamente a história da ilha, sendo considerado o momento em que o cristianismo chegou a Malta.
Mas como era Malta naquela época?
O Império Romano passou a dominar a Ilha da Sicília, bem como o Mar Mediterrâneo, após vencer uma série de três conflitos militares travada com a República de Cartago (cidade-estado fenícia no Norte da África) entre 264 a.C. e 146 a.C, que ficaram conhecidas como Guerras Púnicas.
Portanto, Paulo de Tarso chegou em uma Malta que refletia uma rica fusão de culturas, mas moldada principalmente pela romana. Naquele período, a ilha já possuía centros urbanos bem estruturados, como Melite (atual Mdina), com ruas pavimentadas, edifícios públicos, termas e templos dedicados aos deuses romano.
A língua oficial era o latim, embora elementos linguísticos e culturais cartagineses ainda resistissem entre a população local. A economia girava em torno da agricultura, com destaque para o cultivo de trigo, azeitonas e uvas, e do comércio marítimo, graças à posição geográfica privilegiada da ilha nas rotas entre a Sicília, o Norte da África e o Oriente.
Religiosamente, Malta era uma sociedade politeísta. Os malteses cultuavam os deuses romanos como Júpiter, Juno, Marte e Mercúrio, e acredita-se que templos dedicados a essas divindades existissem nas cidades principais. No entanto, muitos habitantes mantinham práticas e símbolos de origem púnica, como o culto a Baal-Hammon, frequentemente associado ao deus romano Saturno.
Paulo e o Cristianismo em Malta
Paulo havia se tornado missionário após uma profunda conversão religiosa. Assim, passou de perseguidor de cristãos a propagador da mensagem de Jesus em terras gentílicas, percorrendo as regiões da Ásia Menor, Grécia e Roma. Em Malta não foi diferente. De acordo com os relatos escritos pelo Evangelista Lucas sobre acontecimentos da Igreja primitiva após a ascensão de Jesus (Atos dos Apóstolos), o apóstolo compartilhou os ensinamentos cristãos com os locais. Sua influência foi tão forte na ilha que se tornou permanente, tanto no imaginário religioso quanto na identidade cultural dos malteses.
Para começar, o naufrágio teria ocorrido em frente às rochas das Ilhas São Paulo, pequenas ilhotas que compõem o arquipélago. Na ilha maior, Selmunett, “a ilhota do naufrágio”, foram erguidas uma estátua do Apóstolo e um altar onde acontecem missas em ocasiões especiais.
Na cidade de São Paulo (San Paul’s Bay) há um monumento intimamente ligado ao apóstolo, que é a fonte Ghajn Razul (Ghajn significa fonte, enquanto Razul é um nome próprio árabe que indica que o local poderia ter pertencido ou sido encontrado por alguém com esse nome). Segundo a história da ilha, Paulo tocou o local e a água começou a jorrar como uma fonte, saciando a sede dos naufragos. Hoje há uma fonte e uma pequena estátua do apóstolo no local.
“Os ilhéus trataram-nos com extraordinária benevolência; acenderam uma grande fogueira e em torno dela nos recolheram, em vista da chuva que caía e do frio que fazia”, escreve Lucas, que conta também sobre a grande estima que os malteses logo tiveram por Paulo. De acordo com textos no site do Vaticano, Paulo estava juntando galhos para alimentar o fogo quando foi picado por uma cobra e permaneceu ileso. Os locais ficaram surpresos e o consideraram uma pessoa muito especial.
Ainda segundo um relato bíblico em Atos dos Apóstolos 28:7-10, Paulo curou o pai de Públio, a principal autoridade da ilha de Malta na época. De acordo com o texto, Públio, que ofereceu hospedagem a Paulo e seus companheiros, estava com o pai doente, com febre e disenteria. Paulo então impôs as mãos sobre ele e orou, curando o homem. Esse milagre teve um grande impacto entre os malteses e, com isso, outros doentes começaram a procurar Paulo em busca de cura.
Mas o principal lugar em Malta que marca a passagem do Apóstolo na ilha é “As catacumbas de São Paulo”, localizada em Rabat. Para o Vaticano, o local tratava-se da prisão em que Paulo estava detido, embora tivesse liberdade para sair para pregar, instruir, batizar e curar os ilhéus. Ele teria passado três meses ali junto de seus companheiros Luca, Aristarco, Trofimo. Ao lado das catacumbas há também uma básilica menor, que leva o nome do apóstolo.
Catacumbas e Gruta de São Paulo hoje
As catacumbas de São Paulo são na verdade um conjunto de galerias subterrâneas e grutas usadas desde o século III a.C pelos fenícios e depois pelos romanos e cristãos. Elas tinham cerca de 4km e capacidade para armazenar mais de 1000 corpos em diferentes câmaras funerárias. No entanto, elas foram abandonadas durante a ocupação muçulmana da Ilha e redescobertas somente no século XIX.
No decorrer dos séculos, a Gruta de São Paulo (que fica junto às catacumbas) tornou-se meta de peregrinação, um local de culto e de oração e a seus elementos naturais foram reconhecidas virtudes milagrosas. Uma lápide datada de 1743 atesta que, apesar da remoção de terra e pedras em quantidade considerável, o local sempre conservou o mesmo estado.
No século XVIII, o local ganhou uma estátua de mármore branco que reproduz o Apóstolo pregando. Hoje a caverna é acessada partir de uma igreja e do Museu dedicado à ele. A Gruta foi visitada por João Paulo II em 27 de maio de 1990 e por Bento XVI em 17 de abril de 2010, por ocasião do 1950º aniversário do naufrágio de São Paulo. O papa Francisco também esteve no local em 2022.
As catacumbas, bem como a Gruta de São Paulo, podem ser visitadas diariamente (exceto Sexta-feira Santa, Natal e Ano Novo), das 10h às 18h . O ingresso para maiores de 18 anos custa €6. Já os idosos e adolescentes pagam €4,50, assim como os estudantes que apresentam a carteirinha (inclusive de intercâmbio, que foi o meu caso). No local também há um museu com obras católicas
Apesar de toda a história e fé maltesa, para o Patrimônio de Malta a ligação com o santo ainda permanece um mito.
Assista minha visita às Catacumbas de São Paulo aqui.